CASTELO ONDE TE SONHO POESIA

CASTELO ONDE TE SONHO POESIA

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015


O NEVOEIRO DA VIDA, por Pj.Conde-Paulino
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A manhã acordou com a língua pastosa da noite. As persianas, das janelas da cabana sob as árvores da floresta, gemem - com uma brisa estranha. O velho cão está deitado junto das cinzas mornas da chaminé, sonhando os dias em que corria com os seus irmãos, nas campinas do sul. Há, ainda, restos de comida no prato solitário e triste, sobre a mesa de carvalho. O copo, de vidro encardido, jaz, tombado, perto do precipício: na berma da velha mesa.
 
Lá fora o nevoeiro é omnipresente; cobre as árvores e cerra fileiras, nos carreiros, entre as árvores da floresta. No quarto, permanece deitado debaixo dos cobertores e mantas, comprados, ainda, numa vida anterior, longínqua – perdida na bruma das memórias dolorosas.
 
A mente quer forçá-lo a levantar-se e viver. O corpo não lhe obedece e, teimosamente, continua prostrado numa letárgia doentia e sem esperança. O nevoeiro também entrara no olhar daquele homem, derrotado, escondido, envergonhado, pelas circunstâncias da vida. O desemprego, a separação da mulher e da filha; a fuga - e a bebida: a única que não o abandonara -, além do velho cão: encontrado nas traseiras do hipermercado da cidade, junto dos contentores dos restos das remessas dos vegetais e embalados de carne e peixe, fora de prazo.
 
Encontrara aquela cabana - quando pretendia fugir do mundo. A floresta de pinheiros e eucaliptos serviu-lhe de abrigo, nestes dois anos de ausência de si mesmo. Não poucas vezes, olhou os ramos dos pinheiros e a corda - que permanecia enrolada, numa trave do telhado da casa. Por vezes – muitas vezes -, o pensamento da libertação deste corpo, através do suicídio, era uma saída. Depois, depois calcorreava a região: encontrava-se nos riachos de águas cristalinas, no canto dos pássaros, nas vozes das crianças da casa pobre, da horta das palmeiras e na fé: esquecida, mas persistente - herança dos dias em que ainda creditava.
 
Mas, acreditem, o nevoeiro desta manhã, não é igual aos outros nevoeiros. Não, não é igual! Não é de radiação, nem de advecção, nem de evaporação ou mesmo de precipitação. Há uma atmosfera estranha, expectante. A ponte que liga o sul ao norte, está deserta. A esta hora, o trânsito teria que ser infernal, massivo...mas não! A ponte está deserta. Só o nevoeiro a preenche e domina a seu belo prazer. Não há carros, não há gente; só o silêncio e o nevoeiro e o olhar dele -, sobre o rio que não existe, por causa da invisibilidade temporária.
 
Há cristais de gelo no ar que se respira e ele sente os pulmões a doer. Precisa de um milagre. «Preciso de acreditar de novo» – medita, enquanto, com a mochila debotada às costas, se apoia no primeiro pilar do corrimão da ponte. No meio do desespero existencial, sente uma vibração no peito, ou no tabuleiro enorme do passadiço institucional? A claridade dos candeeiros apareceu do nada - podia prosseguir. Prosseguiu mais uns metros. Escutou uma ária nova, entoada na suavidade de muitas vozes - pintadas de amor e de esperança, com muitas cores e idades.
 
Olhou - observou melhor: através do nevoeiro e viu os seus - à frente da multidão de irmãos que nunca o esqueceram. Chegaram de mãos dadas, de lágrimas cristalinas e quentes de amor. Juntos, ao encontro do irmão que se tinha perdido na floresta da vida mas foi encontrado, na solidariedade de quem ama e nunca se esquece de amar – mesmo que a retribuição não seja mais do que um simples sorriso de gratidão. O nevoeiro fugiu, o sol do meio dia brilhou, feliz, pela noite adentro: até ao dia em que, com a esposa e filha, atravessaram a ponte-entre-as-margens; lembrando os dias da separação e a alegria de viverem juntos - o tempo novo da salvação do corpo, da mente e da alma.
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