O NEVOEIRO
DA VIDA, por Pj.Conde-Paulino
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A
manhã acordou com a língua pastosa da noite. As persianas, das
janelas da cabana sob as árvores da floresta, gemem - com uma brisa
estranha. O velho cão está deitado junto das cinzas mornas da
chaminé, sonhando os dias em que corria com os seus irmãos, nas
campinas do sul. Há, ainda, restos de comida no prato solitário e
triste, sobre a mesa de carvalho. O copo, de vidro encardido, jaz,
tombado, perto do precipício: na berma da velha mesa.
Lá
fora o nevoeiro é omnipresente; cobre as árvores e cerra fileiras,
nos carreiros, entre as árvores da floresta. No quarto, permanece
deitado debaixo dos cobertores e mantas, comprados, ainda, numa vida
anterior, longínqua – perdida na bruma das memórias dolorosas.
A
mente quer forçá-lo a levantar-se e viver. O corpo não lhe obedece
e, teimosamente, continua prostrado numa letárgia doentia e sem
esperança. O nevoeiro também entrara no olhar daquele homem,
derrotado, escondido, envergonhado, pelas circunstâncias da vida. O
desemprego, a separação da mulher e da filha; a fuga - e a bebida:
a única que não o abandonara -, além do velho cão: encontrado nas
traseiras do hipermercado da cidade, junto dos contentores dos restos
das remessas dos vegetais e embalados de carne e peixe, fora de
prazo.
Encontrara
aquela cabana - quando pretendia fugir do mundo. A
floresta de pinheiros e eucaliptos serviu-lhe de abrigo, nestes dois
anos de ausência de si mesmo. Não poucas vezes, olhou os ramos dos
pinheiros e a corda - que permanecia enrolada, numa trave do telhado
da casa. Por vezes – muitas vezes -, o pensamento da libertação
deste corpo, através do suicídio, era uma saída. Depois, depois
calcorreava a região: encontrava-se nos riachos de águas
cristalinas, no canto dos pássaros, nas vozes das crianças da casa
pobre, da horta das palmeiras e na fé: esquecida, mas persistente -
herança dos dias em que ainda creditava.
Mas,
acreditem, o nevoeiro desta manhã, não é igual aos outros
nevoeiros. Não, não é igual! Não é de radiação, nem de
advecção, nem de evaporação ou mesmo de precipitação. Há uma
atmosfera estranha, expectante. A ponte que liga o sul ao norte,
está deserta. A esta hora, o trânsito teria que ser infernal,
massivo...mas não! A ponte está deserta. Só o nevoeiro a preenche
e domina a seu belo prazer. Não há carros, não há gente; só o
silêncio e o nevoeiro e o olhar dele -, sobre o rio que não existe,
por causa da invisibilidade temporária.
Há
cristais de gelo no ar que se respira e ele sente os pulmões a doer.
Precisa de um milagre. «Preciso de acreditar de novo» – medita,
enquanto, com a mochila debotada às costas, se apoia no primeiro
pilar do corrimão da ponte. No meio do desespero existencial, sente
uma vibração no peito, ou no tabuleiro enorme do passadiço
institucional? A claridade dos candeeiros apareceu do nada - podia
prosseguir. Prosseguiu mais uns metros. Escutou uma ária nova,
entoada na suavidade de muitas vozes - pintadas de amor e de
esperança, com muitas cores e idades.
Olhou
- observou melhor: através do nevoeiro e viu os seus - à frente da
multidão de irmãos que nunca o esqueceram. Chegaram de mãos dadas,
de lágrimas cristalinas e quentes de amor. Juntos, ao encontro do
irmão que se tinha perdido na floresta da vida mas foi encontrado,
na solidariedade de quem ama e nunca se esquece de amar – mesmo que
a retribuição não seja mais do que um simples sorriso de gratidão.
O nevoeiro fugiu, o sol do meio dia brilhou, feliz, pela noite
adentro: até ao dia em que, com a esposa e filha, atravessaram a
ponte-entre-as-margens; lembrando os dias da separação e a alegria
de viverem juntos - o tempo novo da salvação do corpo, da mente e
da alma.
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